Sol
e Terra: pequeno conto metafísico
Bajonas Teixeira de Brito Júnior
Não
necessariamente o mundo é o que vemos nas telas dos cinemas, das tvs e dos
monitores. Muita gente desconfia disso, mas poucos se aventuram a investigar o
assunto mais a fundo. É tão estranho como é, de algum modo, olhar direto para o
sol. A luz fustiga nossos olhos e, por isso, desviamos a visão. É verdade que o
sol cega, mas ficar cego pode ser o preço certo que se paga por não respeitar a
dignidade do sol. É a luz do sol que nos deixa ver tudo. Foi por causa dela que
a natureza criou nos animais antenas, sensores, e depois olhos, porque havia
uma coisa deliciosa que a vida não podia ignorar, que era a luz. Com os olhos a
vida saiu da monotonia do escuro em que só se apercebia de ecos surdos e
reverberações muito tênues. Até então ela era cega como uma minhoca e apenas se
contorcia no mundo subterrâneo. Ela não tinha olhos para ver. E os olhos só
surgiram para isso: para ver a luz do sol. E não para ver o sol. O sol é a pura
visão, a luz pura, mais pura que qualquer coisa pura desse mundo. Tudo que
vemos, vemos através dela, por mercê dela, e por isso querer encará-la é uma
ousadia nefasta. Ninguém vê aquilo através do qual vê as outras coisas.
Os
vegetais, as árvores e tudo mais que vive colado na terra, viram que o calor
era bom, e que senti-lo e poder crescer na direção do céu lhes bastava. Juraram
lealdade à terra e ao prazer de viverem presos no frio úmido e escuro embaixo
do solo. E viveram assim tranquilos, embora nem sempre em paz.
Os
primeiros animais que pisaram na terra, só esses tinham olhos para ver o sol.
Porque tinham olhos que ainda eram fracos para ver a luz nas coisas. Eram como
membranas em que a luz das coisas batia como se fosse um vento. Algumas lufadas
eram mais fortes e intensas. Eram as que vinham direto do sol e que mais os
agradavam. Então eles, que ainda não enxergavam, podiam enxergar o sol. E não
viam o sol. Não viam muita coisa. Viam só o que nós vemos hoje quando fechamos
os olhos e olhamos para o sol. E como vemos dentro das pálpebras. Com cores cor
de tijolo e vermelho formando abóbadas celestes, a sensação de quente e as
membranas vibrando de vez em quando de prazer.
Por
isso esses primeiros terrestres gostaram do sol. Eles amavam o sol. Porque
quando havia sol, e eles olhavam para o sol durante algum tempo, eles sentiam
uma grande felicidade. E quiseram sempre mais o sol até que a membrana foi se desgastando
com a incidência de tanta luz, e começou a se tornar mais íntima da luz até
virar um olho de verdade. Mas quando chegou esse dia, eles descobriram que já
não mais podiam olhar direto para o sol. Tinham agora que se contentar em ver
só a luz do sol refletida nas coisas. Mesmo assim, não esqueciam o prazer do
sol, porque o sol continuava a aquecê-los e fazê-los viver. Exóticas religiões,
séculos depois, iriam dizer que os adoradores do sol eram adoradores de ídolos.
Quem dizia isso, já tinha esquecido que o sol foi o pai de tudo, que ele pôs os
homens para andarem sobre duas pernas, e deu asas aos pássaros.
Quando
chegava o inverno, tudo era muito difícil. Era preciso sobreviver às neves, às
geadas, ao vento geladíssimo. Então, muitos morriam. Foi só quando uns animais
que foram mais fiéis discípulos da luz, e por isso, começaram a desenvolver
membros para tocar nas coisas com mais facilidade, e uma posição ereta para
discernir as coisas mais longe, foi só nessa época, que os animais da luz
conseguiram dominar uma faísca do sol. Eles fabricavam um pequeno sol. Usando
madeira e lenha, eles invocavam os poderes da luz e, de repente, uma chama
surgia em resposta. Só aos seus sacerdotes mais elevados era lícito lidar com
fogo, assim como mais tarde, só eles conheceriam os segredos mágicos da
escrita. A madeira, na qual o espírito do fogo fazia sua aparição quando convocado
pelo ritual, também era sagrada. E suas fogueiras ficavam protegendo-os nos
invernos. Iluminando suas cavernas. Afugentando os animais a quem apetecia a
carne humana. Nenhuma das façanhas dessa raça foi mais santa que essa. E também
nenhuma deixou-a mais perto de deus.
Nessa
época os homens conheciam deus, e o chamavam pelo nome de sol. Pensando sobre
ele, sobre como criou todas as coisas, e como todas as coisas nele de novo se
absorviam, os homens se alegravam porque sentiam ser os seus pensamentos mais
ousados. Era o que exigia que fossem mais brilhantes. Os mais iluminados.
Então, quanto mais pensavam os homens, mas sentiam que eram filhos da luz. O
sol regia todas as coisas. Fazia crescer as plantas, degelar os rios,
reproduzirem os animais. O sol tinha o maior poder. Por isso, também queimava e
matava de sede. Também destruía com os raios, que eram os dardos do sol. Mas um
dia aconteceu algo estranho.
Um
homem, que seguia com uma tocha durante a noite, viu que os outros animais,
todos, todos, tinham medo do fogo. Então, nesse dia, ele começou a tentar
explicar o que acontecia. No fim, ele encontrou a resposta: que com a sua
tocha, ela carregava um pouco do sol, o astro rei. E que quando os animais
fugiam ao vê-lo passar, era porque queriam se esconder da sua supremacia. Não conseguem
olhá-lo, assim como ele não conseguia fixar o sol. A partir daí, seu raciocínio
andou muito rápido. Ele então, considerando tudo, gritou com pavor quando deu a
luz a mais insólita teoria, a mãe de todas as teorias: que o homem era o sol dos animais. Que todos deviam obedecer-lhes
ou serem mortos com justiça por ele, se ousassem ataca-lo. Ele, o homem, era o
senhor de todos os animais da terra, do mar e dos ares. Como segundo sol, e
senhor dos animais, ele era o sacerdote do sol na terra. O seu filho e
representante. Por isso, ele podia assar a carne dos animais. E fazia isso em sacríficos,
para que a fumaça das gorduras, queimadas pelo fogo que lhe foi dado por seu
pai, subisse para alimentar a alegria do sol.
Desde
esse dia, o homem não parou de afagar e lamber com pensamentos essa ideia de
ser o rei e o deus dos animais. E de ser o rei e o deus do mundo. O dono da luz
e de todas as luzes. Ele usou para suas ideias a palavra “teoria”, que
significa “visão”. Só ele participava da visão do sol, de quem nada consegue se
esconder. Por isso, o homem criou a filosofia e a ciência. Para que elas
provassem por a + b a sua própria superioridade. E elas, com prazer, provaram a
superioridade do homem. E, para mostrar essa força, ajudaram o homem a
desenvolver suas armas de fogo.
Quando
isso aconteceu, o brilho que o homem havia herdado do sol se transformou em
fogo de morte; em grandes incêndios, em armas de fogo, em câmaras crematórias
de campos de concentração, em foguetes, em aviões lançando granadas, em bombas
atômicas. Tudo que queimava, carbonizava, pulverizava interessava ao homem. O
motivo era simples.
A
luz do homem se tornou tão potente que era preciso, que dentro dessa raça
surgisse uma camada mais fina, mais concentrada e fervente. Era como quando
viramos uma lupa até que a luz do sol, a atravessando, produza um foco bem fino
sobre uma folha seca. Então esse calor queima muito. E surge fogo. Agindo
assim, os homens queriam decidir de uma vez por todas quem seria o mais intenso
foco de luz. Quem dominaria todos os outros, porque seria o mais radiante. O
mais perigoso. O mais parecido com o sol. Um sol gelado que queimaria mais que qualquer
gelo. Os nazistas achavam que eles eram os mais solares. E faziam desfiles
noturnos portando tochas pelas ruas do país. E sobreveio a conflagração. O
mundo ardeu por anos. Milhões de vidas foram destruídas e continentes viraram
destroços. Dos homens, o que mais se via, eram as caveiras. Ou seja, os homens com
tanta luz, podiam ver em profundidade dentro de si mesmo. E só viam esqueletos.
Hoje
estamos no meio do incêndio. A máquina gira, e ela precisa de energia para
produzir combustão. Ela precisa de petróleo, que é altamente combustível. Ela
precisa cada vez mais produzir fogo. E para isso, queima as florestas, para
produzir carvão, que irá produzir fogo. Ela precisa de energia atômica para
alimentar a sua fome de fogo e de energia. Da energia digital, para alimentar
sua fome de velocidades que se aproximem da luz. Da energia de nossos corpos e
de nossos sonhos, para aquecer os mercados e fazer subir a temperatura nas
bolsas. As multinacionais, as grandes corporações, os grandes mercados – tudo
se une para produzir calor e gerar mais vida. Por que mais energia é mais
dinheiro, que é mais vida. E é mais saber. E também mais prazer. Mais alegria.
E o rei das nações, os EUA, despeja fogo sobre o mundo numa “guerra infinita”.
Assim ele pretende gerar mais poder. E mais vida, porque mais poder é mais
vida. E é mais saber. E também mais prazer. Mais alegria. Enfim, tudo para
buscar emparelhar, um dia, o poder do sol. E depois, quando chegar a hora,
golpeá-lo mortalmente, tal como Zeus fez com seu pai Uranos.
Depois
de descobrir que era o filho predileto do sol, o homem começou a implodir a
terra sob seus pés e, agora não há mais terrenos firmes. Só areias movediças.
Por isso, a cada salto que o homem dá querendo tocar o sol, mas ele afunda no
subsolo. No sub solar. No mundo sub lunar. A catástrofe não está próxima. Ela
já começou. Sobrevivemos, mas sobreviver não é viver. É o único caso em que o
“sobre” significa “menos”, e não “mais”.